quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Bela, belo

Admito: sou um romântico incurável, aquele que, como diz Roberto Carlos, ainda manda flores. Para a Cláudia. Três vezes, no mínimo, por ano. Duas só pelo dia dos namorados. Em fevereiro, São Valentim, data em que se comemora o dia dos namorados em muitos lugares, inclusive na França, e em junho. Sou romântico. Está dito. Quando chega a primavera, desabrocho. Fico ainda mais apaixonado. Pela Cláudia e pelo cotidiano da cidade. É nele que acontece o extraordinário de cada dia, o fantástico da banalidade, o reencantamento do mundo. Já contei aqui muitas cenas estupendas que presenciei nas ruas de Porto Alegre. Por exemplo, aquela da moça linda, com uma mão apinhada de livros e a outra segurando um guarda-chuva, cujo cadarço do tênis desamarrou. Um guri da idade dela simplesmente se abaixou e, no meio das poças de água, amarrou o tênis dela. Levantou, sorriu e se foi. Lindo.

Um desconhecido. Belo como ela. Nem pediu o telefone. Pensei que jamais veria nada semelhante outra vez. Pois não é que na semana passada, na frente do Mercado Público, vi uma cena que me emocionou? Na minha frente, com o sol lambendo a praça, andava sinuosa uma mulher, magra, alta, mas não muito, cabelos longos, esguia, perfeita, fazendo-me pensar num poema de Charles Baudelaire que traduzi chamado “a uma passante” (está na minha seleção de poemas de as Flores do mal, que vocês encontram na Feira do Livro). Estava sendo montada a Feira do Pêssego. Restava apenas um brete para os transeuntes. Cabos escorando a estrutura erguida avançavam sobre a passagem como perfeitas armadilhas. Na direção contrária à nossa, vinha um homem titubeando, com os pés passando a milímetros daqueles laços presos ao solo. A queda parecia imediata.

Um cego. A deusa que andava à minha frente (desculpem-me, mas não encontro outra imagem mais precisa do que esse clichê) deu um passo e sussurrou algo que não ouvi. O cego parou. Ergueu o rosto. O sol acariciou-lhe a face. Havia força, dignidade e calma no seu rosto. Devo dizer que havia mais: virilidade. Parecia um lobo farejando o vento. Por um segundo, ninguém se mexeu. Eu vi, juro, a cidade imóvel. Lembrei do título de uma peça famosa: “Um grito parado no ar”. A prefeitura, com sua fonte, era um cartão-postal sem qualquer imperfeição. A mulher aproximou-se ainda mais do homem. Por um segundo, pareciam fundidos. Então, suavemente, ela o pegou pela mão. Virou-se. Caminharam na minha direção. Não me mexi.

Achei que flutuavam. Delirei. Aquela cena tinha a cor e o sabor de uma taça de champanha que eu havia bebido na véspera. Será que estava bêbado? O cego e a bela seguiam lentamente. Tentei pensar que nada havia de mais naquilo. Que interessava se a moça era linda? Que importava se o homem era cego? Qualquer um, bonito ou feio, teria feito o mesmo. Não adiantou. Meu cérebro se recusava a processar essa idéia. Cheguei a silenciosamente me rotular de preconceituoso. “Qual é, cara”, eu me disse, “toda essa história só porque o sujeito não enxerga e a guria é gostosinha?” Inútil. Eu me via deslumbrado com a situação. Foi aí que ouvi um voz se elevar: “Sai da frente, taipa!
Juremir Machado da Silva


Correio do Povo. 16/11/2010.

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